Fernando Torres
Doizum Comunicações
Em Quilombo do Baú, comunidade quilombola nos arredores de Milho Verde, a agricultora Clemilde da Conceição tira todo o seu sustento da terra, do cultivo de arroz, feijão, mandioca – e milho. É dessa matéria-prima que são feitos os famosos pastéis de angu da chef Vânia Queiroz, de Conceição do Mato Dentro, cidade que rivaliza com Itabirito o título de capital da iguaria. A partir do cultivo do cereal, nasce também a polenta com ragu de linguiça caipira, assinada pela chef Valdelícia Coimbra, de Belo Horizonte.
As três mulheres são alguns dos diversos personagens que integram a plataforma “Fartura Brasil”, projeto que, por meio de expedições imersivas, mapeia os caminhos e descaminhos dos ingredientes, de sua origem ao prato. Esse trajeto chega ao público por meio de festivais gastronômicos, dos quais o mais conhecido é o “Festival Cultura e Gastronomia”, de Tiradentes, que completou 25 anos em agosto de 2022. Nessas mais de duas décadas, mais de 3 mil atrações gastronômicas fizeram o paladar de quase 1 milhão de pessoas, seja por meio da comida de rua ou dos lendários festins, jantares harmonizados com chefs renomados.
Da vila colonial, o “Fartura” se expandiu para outras cidades, de Norte a Sul do país, como Fortaleza, Florianópolis, São Paulo, Brasília e Belém, e até em Portugal. Embora a base seja a comida brasileira, a alma mineira não nega a prerrogativa. Chefs mineiros e ingredientes da terrinha sempre batem ponto nos eventos fora de Minas, a exemplo de Flávio Trombino, do famoso restaurante Xapuri, de Belo Horizonte. O festival também privilegia a disseminação em seu próprio território: além de Tiradentes, o ano de 2022 também registrou edições em Belo Horizonte, Nova Lima, Serro e Conceição do Mato Dentro.
Na capital e na região metropolitana, o evento valorizou os chefs locais que bebem na tradição e apontam para o futuro, como Henrique Gilberto, do Cozinha Tupis; Sinval Espírito Santo, do Fubá; e Jaime Solaris, do bar Pirex. Destaque para o chef Guilherme Melo, do restaurante Nuúu, que apresentou a inusitada barriga de porco com molho rôti de doce de leite e lobozó (espécie de mexido) com queijo Canastra.
Matriarcas da cozinha
Já nas cidades do interior, o “Fartura” homenageou Dona Lucinha, uma das principais representantes da cozinha “raiz” de Minas Gerais. “Batizar o Festival com o nome desta personagem tão importante da nossa gastronomia é também homenagear todas as matriarcas, empreendedoras e cozinheiras das famílias mineiras, que são muitas. Dona Lucinha tinha a gastronomia como um propósito, e esta também é a nossa causa no ‘Fartura’”, afirma Rodrigo Ferraz, diretor da plataforma.
Ex-participante do reality show “Mestre do Sabor”, da “TV Globo”, a chef Bruna Martins, dos restaurantes Birosca e Florestal (BH), foi madrinha do evento em Conceição de Mato Dentro. “É uma chef jovem que vem abraçando a gastronomia mineira de um jeito muito bonito”, descreve a jornalista gastronômica Carolina Daher, co-curadora do “Fartura”.
As matriarcas também foram representadas pela chef Adriana Fernandes, do Santa Matula, de Ouro Preto, que revelou os segredos da carne de lata, técnica centenária utilizada para conservar o porco em sua própria banha, acompanhada de delícias da cozinha caipira, como tutu, torresmo, couve e ovo frito. “A gastronomia mineira é uma grande história secular, de muita cultura alimentar. E sabemos que Minas é um mundo: cada região do estado tem uma cultura própria”, avalia Carolina.
A comida como protagonista
Embora seja um dos mais famosos, o “Fartura” não é o único festival a enaltecer a gastronomia mineira. Depois de um hiato provocado pela pandemia, as cidades voltaram a receber eventos de grande porte tendo a comida como protagonista. É o caso, por exemplo, do “Igarapé Sabor”, que movimenta a cidade de 34 mil habitantes na Região Central de Minas. Com mais de 20 barracas montadas na Praça Miguel Henriques, o festejo serve pratos como pernil de tacho com geleia de jabuticaba, costelinha na cachaça e mel, bolinho de feijão-fradinho e mexido com lombo ao molho de abacaxi. Destaque também para os bolos, broas e biscoitos, assados e fritos em fornos gigantes na Praça das Quitandas.
Em Sabará, o “Festival da Jabuticaba”, realizado há quase quatro décadas, celebra mais de 40 receitas que levam a fruta em sua composição, seja como protagonista ou como acompanhamento. Na cidade, a fruta é conhecida como “ouro negro” e é considerada patrimônio imaterial. São compotas, geleias, licores, molhos, temperos, sorvetes, vinhos, tortas e até cachaça e pipoca.
Já em São Tiago, na região do Campo das Vertentes, a “Festa do Café com Biscoito” é outro Patrimônio Cultural Imaterial reconhecido pelo Iepha. Anualmente, a festa reúne em torno de 100 mil pessoas durante quatro dias, com a degustação gratuita de mais de seis toneladas de biscoitos, acompanhados, claro, “daquele” cafezinho. A tradição remonta ao século 18, quando a população são-tiaguense abastecia os tropeiros que por ali passavam com latas de biscoitos de polvilho e fubá. Foram-se os tropeiros, ficaram as quitandas: o município de apenas 10 mil habitantes sedia hoje mais de 80 fábricas de biscoito.
E o que dizer da “Festa do Pé-de-Moleque”, de Piranguinho, no Sul de Minas, que ocorre em torno do maior pé-de-moleque do mundo? Com a meta de sempre superar a meta, a versão da guloseima de 2022 teve nada menos que 27 metros de comprimento – três metros a mais que a última edição, anteriormente à pandemia, em 2019.
Para cada recanto mineiro, um festival. Ouro Preto possui em seu calendário anual o “Festival de Cozinha, Arte e Cultura”. Na divisa com São Paulo, Extrema apresenta o “Festival Sabores da Roça”. Na região metropolitana de BH, ainda temos o “Ibirité Gourmet”, o “Brumadinho Gourmet” e o “Igarapé Bem Temperado”. Em Congonhas, os profetas de Aleijadinho salivam com as delícias do “Festival da Quitanda”, enquanto o Lago de Furnas, em Capitólio, se integra ao “Festival Gastronômico Sabores do Peixe”. Ponte Nova, terra da Goiabada da Zélia, ainda tem a “Festa da Goiabada”; e Lagoa Dourada, a “Festa do Rocambole”, legítima receita libanesa.
Depois de tanta comilança, seria a gula ainda considerada um pecado?
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