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Nova cozinha mineira: tradição e inovação caminham lado a lado

Por Celina Aquino (BH) Jornalista, repórter de gastronomia do jornal “Estado de Minas”


Jiló Pacato, do chef Caio Soter de Belo Horizonte. Foto: Rubens Kato

A tradição é um tempero essencial da cozinha mineira. Não tem como pensar em frango com quiabo, lombo com tutu de feijão, queijo com goiabada e outras tantas receitas que nos identificam como território sem reverenciar o passado. Um passado com fogão a lenha, tachos, quintais com frutas e verduras e saberes que não estão nos livros.


Tenho como referência de cozinha mineira a minha avó. Ela era de uma cidadezinha bem no interior das Minas Gerais. Matava o frango caipira do quintal para fazer o mais caprichoso frango ao molho pardo. A linguiça, que ela mesma enchia, ficava dependurada no fogão a lenha para ganhar aquele sabor defumado. O tacho com leite e açúcar passava horas e horas no fogo até se transformar em doce de leite.


Minha avó é um entre tantos exemplos de mulheres que representam a tradição da cozinha mineira. Aqui não posso deixar de citar dois grandes nomes que viveram para mostrar, além das fronteiras, o que Minas tem de melhor nas panelas: Dona Lucinha (Restaurante Dona Lucinha) e Nelsa Trombino (Xapuri). Indiscutivelmente, elas são personagens centrais da nossa história e da construção da imagem da nossa cozinha.


A identidade da cozinha mineira está diretamente associada a este passado. Ainda bem. Só temos a ganhar quando reverenciamos e preservamos as nossas raízes com todo o respeito que elas merecem. Mas será que estamos “condenados” a reproduzir o passado?


Belo Horizonte vive um momento de efervescência gastronômica. Em 2019, recebeu o (merecido) título de “Cidade Criativa da Gastronomia”, concedido pela Unesco, tornando-se referência mundial na área, ao lado das brasileiras Belém (PA), Florianópolis (SC) e Paraty (RJ). Ao mesmo tempo, restaurantes e chefs da cidade vêm ganhando projeção nacional e internacional. O Glouton, de Leo Paixão, chegou à 64ª posição na lista dos “100 Melhores Restaurantes da América Latina”, de 2022, organizada pelo “Latin America's 50 Best Restaurants”.


Além disso, desde que a pandemia permitiu a reabertura de bares e restaurantes, temos sido surpreendidos por uma avalanche de novos estabelecimentos e novas propostas. BH nunca esteve tão criativa, gastronomicamente falando. Diante de todo este cenário, levanto uma reflexão: como a cozinha mineira tem se mostrado no tempo presente? Podemos dizer que existe uma nova cozinha mineira? Se existe, que cozinha seria essa?


Essa reflexão surgiu quando comecei a observar uma nova geração de chefs mineiros que fazem comida mineira, mas não aquela do fogão a lenha. Eles resgatam as referências do passado com um olhar contemporâneo. Cada um, com o seu trabalho autoral, faz a cozinha mineira se renovar, propondo novos modos (técnicas) e novas vestes (apresentação).


Caio Soter é um dos nomes que me chamam a atenção. Jovem, ele tem uma conexão forte com as suas raízes. E a cozinha do restaurante Pacato é reflexo disso. O chef, de 32 anos, parte da tradição para construir algo novo. Os ingredientes são os mesmos, mas a forma de prepará-los e servi-los, não. Investindo em inovação e criatividade, ele apresenta a cozinha mineira com uma roupagem moderna.


O que Soter vem fazendo com o jiló impressiona. Mesmo sendo um ingrediente que conhecemos bem, por ser um dos representantes da nossa cozinha, surpreende. Depois de ser defumado, ele surge inteiro, no centro do prato, claramente deixando de ser um acompanhamento para brilhar como protagonista. O molho de mostarda, a compota de jabuticaba e a mousseline de fígado de galinha ajudam a equilibrar o seu controverso amargor.


Caio Soter, para mim, é a cara da nova cozinha mineira. Mas não está sozinho nessa. Bruna Martins, também com 32 anos, segue o mesmo caminho. A chef defende que a cozinha mineira não precisa ser só de raiz. Ao apresentar receitas modernas e autorais, ela também fortalece as nossas origens e tradições.


No seu restaurante Birosca, que fica no Santa Tereza, antigo bairro boêmio de BH, Martins recria a clássica combinação de fígado com jiló, servindo strudel de jiló. A massa folhada redonda é recheada com jiló assado, cebola caramelizada, nozes e uvas passas. Por cima, mousse de fígado e queijo azul.


Localizado no Mercado Novo, que se recolocou no mapa da cidade com uma ocupação criativa, o Cozinha Tupis dá uma cara mais cosmopolita para a cozinha mineira. O chef Henrique Gilberto, de 35 anos, quer que a experiência do cliente que se senta no balcão seja mais minimalista. Por isso, trabalha para potencializar a sensação que se espera em um prato tradicional em uma comida empratada e muito bem pensada.


Em uma das suas criações, o molho pardo é protagonista. O caldo feito com sangue de galinha rega, em abundância, o prato com nhoque, ragu de frango com quiabo e folhas de ora-pro-nóbis. Assim como as nossas avós, Gilberto continua a buscar ingredientes no quintal e na horta, que, no seu caso, são o próprio mercado, com seus feirantes.


Yves Saliba, do Per Lui, diz ser de uma nova geração que não quer fazer mais do mesmo e tem inquietude de bolar algo novo. Seu caminho é mostrar que a cozinha mineira pode ser extremamente fina e sofisticada. Para fazer isso, o chef, de 30 anos, sempre volta ao passado, trazendo para a cozinha contemporânea técnicas e receitas tradicionais.


Vejamos sua versão de frango com quiabo. O prato se constrói com ballotine de frango e quiabo processados, que nada mais é do que o rocambole clássico de casa. No lugar do angu, ravióli de milho recheado com creme de milho. Para completar, um crocante de frango assado que faz as vezes da pele. Tudo é regado por um consomê de frango com quiabo.


O trabalho destes chefs da nova geração mostra que a cozinha mineira tem buscado o seu lugar na contemporaneidade e em ambientes de fine dining, inclusive com menu degustação. Mas isso não significa renegar o que já passou. Todos demonstram profundo respeito e reverência pela nossa história. Afinal, não dá para construir o futuro sem olhar para o passado. Que a nova cozinha mineira seja um respeitoso encontro entre tradição e inovação.

 

Sobre a autora



Celina Aquino é jornalista de gastronomia há sete anos. Toda semana, escreve sobre novidades e tendências no caderno “Degusta”, do jornal “Estado de Minas”. Em 2022, atuou como jurada da lista dos 100 melhores bares do Brasil, organizada pela revista “Exame”. Já participou de grandes coberturas nacionais e internacionais, incluindo México, Noruega e Itália. Foi a única jornalista brasileira convidada para cobrir a edição de 2021 da feira de gastronomia “TUTTOFOOD”, em Milão.


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