Por Renato Moraes (BH)
Jornalista e escritor, especialista em história e memória
Cozinha e comida têm história assim como cada cabeça uma sentença. Basta lembrar dos cadernos de receitas passados de geração em geração com sua arte e modos de fazer exclusivos e peculiares a dar resposta a toda sorte de pratos, doces, quitutes etc. A típica comida mineira não foge à regra, fruto do caldeamento de diferentes grupos étnicos, seus costumes, gostos e hábitos, do que resultou uma culinária múltipla e diversificada ao longo do tempo. Traços de origem e fatores múltiplos a compõem. Há paradoxos acerca da sua construção e controvérsias a serem pensadas, a começar pelo discurso oficial que a referendou além fronteiras. É na premissa das variedades de ingredientes, práticas alimentares e mentalidades que se estabelece a possibilidade de fixar a comida mineira como elemento identitário. Passado (tradição) e presente (inovação) se conjugam possibilitando continuidades e mudanças que, transmitidas sucessivamente, garantem sua permanência e contemporaneidade.
Desde que se convencionou disseminar um pretenso mito da mineiridade, concebido dentro de uma estratégia política de projetar um imaginário regional, incorporou-se a ela, com o devido respaldo intelectual, a propagação da cozinha mineira, baseada em sua história e eficácia simbólica. No esboço de sua formação recorreu-se às raízes fincadas já na época da ocupação inicial do território, primórdios do período da mineração, tendo a comida como elemento agregador a partir dos primeiros povoadores. Sucedeu-o a quadra posterior marcada pela progressiva ruralização da província nas últimas décadas do Setecentos até o início do século XX, dominado pela hegemonia das fazendas interioranas e da agropecuária autossuficiente.
Do fundo do tacho aflorou a matéria-prima que comporia daí pra frente o cardápio trivial da mesa dos montanheses. Sóbria, rústica, prosaica, formou-se tributária da herança paulista dos bandeirantes e tropeiros, dos hábitos e costumes da oficialidade portuguesa e da presença massiva de escravos africanos, agregados ao fluxo de migrantes de variados rincões, além da presença dos povos originários. É do quintal, com seus canteiros de hortaliças, pomares de frutas e terreiros de criação de porcos e galinhas, que se extrai a base da sua alimentação, comida de “sustância” obtida por meio de uma cultura de subsistência. Desse amálgama se encarregaram de perpetuar documentos dos tempos do Brasil Colônia, relatos dos viajantes estrangeiros, tradição oral, acervos familiares, reminiscências de escritores e memorialistas, análises e abordagens de estudiosos e pesquisadores.
E o que eles nos dizem? No Códice Costa Matoso, a mais antiga coleção de registros da Capitania de Minas Gerais reunidas por seu ouvidor-geral entre os anos de 1749 e 1752, contendo várias notícias dos primeiros anos de formação da região, é possível ter uma real dimensão do que constituiu a base de tal cozinha. Naqueles sertões de “matos incultos montanhosos” em que aportou o conquistador de gentios, Antônio Rodrigues Arzão, natural da Vila de São Paulo e primeiro faiscador a descobrir algum ouro em seus ribeiros, havia carência de víveres silvestres e escassez de caças.
De acordo com o códice e ao contrário do restante do Brasil, Minas Gerais, juntamente com São Paulo, não apoiou o seu sustento na mandioca e sim no milho. Embora vários relatos de viajantes e historiadores refutem o fato. Com ele se supriu, em seus primórdios, a falta do pão de trigo e se fez a farinha, o fubá, o angu, os bolos, broas, biscoitos, pamonhas, canjicas grossa e fina ou canjiquinha que, segundo o ouvidor, substituía o arroz. Há, no códice, inclusive, descrições pormenorizadas a respeito da confecção de receitas em torno do cereal. E menção à falta de sal, artigo raro e caro, cujo preço inflacionou assim como os demais alimentos disponíveis em razão direta da afluência vertiginosa de gente vinda de diferentes lugares em busca do ouro.
Ao mesmo tempo em que o desabastecimento vai se equacionando, com o surgimento de pequenas propriedades agrícolas, a chegada de colonos e reinóis de etnias diversas propiciam a expansão e diversificação da mesa dos novos habitantes do território. Em sociedade buscam fundar e criar condições de sobrevivência onde o alimento é essencial, gênese da criação de sua cozinha. Da senzala à casa grande, com um pé na corte e outro na roça.
A cozinha passa a ser o núcleo agregador das relações onde o fogão a lenha, entronizado, passa a reinar absoluto, tendo como parceiras panelas de ferro e colheres de pau. Em torno dela gravitam as funções domésticas e o convívio familiar. Nela se estabelece o centro polarizador onde se processam os rituais de preparo das comidas, as refeições cotidianas e as reuniões sociais.
E o que é servido à mesa? Nos seus pratos estão presentes, é lógico, os carros-chefe da culinária mineira: feijão-tropeiro, galinha ao molho pardo com quiabo, angu e couve, tutu de feijão com linguiça e torresmo, lombo de porco com farofa, costelinha com canjiquinha ou ora-pró-nobis, a decantada e substanciosa folha de uma espécie de cáctus, comum na paisagem do estado. Da mesma forma, o jiló, companhia inseparável do fígado acebolado de boi, sempre presente nos balcões dos seus bares e botequins. Sobremesa não pode faltar: entre outras opções de compotas, doce de leite e goiabada com queijo, acompanhados de um cafezinho fumegante, de preferência pilado e coado na hora.
Terroir por excelência de ícones culinários como o pão de queijo, a cachaça, os cafés, os queijos de leite cru de vaca, o doce de leite, a goiabada e a geleia de jabuticaba, o cardápio mineiro é enriquecido por um sem-número de bolos, pães, biscoitos, tortas e pudins. Formam um leque disponível com inúmeras variações ao gosto de cada freguês. Herança das fazendas que proliferaram ao longo do século XIX no estado e se tornaram o polo vital e definidor do microcosmo social após o esgotamento do ciclo aurífero, substituído pela intensificação da agricultura.
Com as mudanças de ritmos e padrões impostos pela vida moderna, assiste-se à alteração dos hábitos alimentares em que a típica cozinha mineira reduz sua presença no cotidiano das famílias, contrapondo-se à expansão de restaurantes dedicados a ela. Responsáveis pela sua consolidação no ideário da culinária nacional, eles permitem constatar o que ainda perdura e o que foi incorporado: tradição e inovação, sabores e saberes contribuindo como um dos pilares centrais para a perpetuação do mito e a imagem da mineiridade além-fronteiras. “Dize-me o que comes e te direi quem és”.
Sobre o autor
Renato Moraes é jornalista e escritor, Renato Moraes passou pelos principais veículos de comunicação do país, tais como a revista “Veja” e o jornal “Folha de S.Paulo”. Ex-editor-executivo da revista “Imprensa”, criou e dirigiu as revistas “Abre Alas”, “FIA” e “Maturidade”. Estudioso da culinária brasileira, é autor do guia sobre os bares e botequins de Belo Horizonte, entre outras obras.
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