Fernando Torres Doizum Comunicações
A cozinha de Minas Gerais deve muito às matrizes indígena, portuguesa e africana. A contribuição que os povos africanos, trazidos escravizados, deram às panelas, no entanto, teria sido mais forte que a dos povos originários e, também, dos colonizadores. Isso porque, além de terem introduzido produtos como jiló, quiabo e inhame, muito presentes nos pratos mineiros, os negros escravizados tiveram participação ativa nas cozinhas do período colonial, seja da casa grande ou da senzala. Foram as mulheres africanas que trabalharam nos fogões dos senhores e das senhoras, com a tarefa de alimentar famílias inteiras.
O chef Júlio César Cândido ressalta que era preciso criatividade para cozinhar. “As cozinheiras da época tinham que ‘se virar’ com o que tinham. O bambá de couve, por exemplo, é um prato típico das cidades coloniais mineiras, especialmente Ouro Preto, criado pelos povos escravizados. Trata-se de um mingau de fubá com pedaços de carne de porco e couve picada: forte, dava sustança ao trabalho árduo. O pastel de angu também. Contam que escondiam carne, que era difícil, em bolinhas de angu e fritavam, dando origem ao pastel”, diz o chef, de 24 anos, que é afrodescendente e vem se destacando no setor gastronômico de Minas.
Como observa a chef Rosilene Campolina, professora do curso de Gastronomia do Centro Universitário (UNA), o próprio angu teria sido obra da criatividade das mulheres escravizadas. “Na África, era usado outro cereal, o sorgo. Em Minas, o substituíram pelo fubá. A comida africana tem, por excelência, essa característica de comida de caldo, ensopada ou de papa”, observa a especialista.
Iguarias emblemáticas
Mestre em Educação e Sustentabilidade Gastronômica, a chef Rosilene lembra que uma das iguarias mais emblemáticas da cozinha mineira, o frango com quiabo, também revela muito da influência dos povos escravizados. “Eram as africanas que preparam as comidas nas minas, lavouras, senzalas. Das fazendas, juntou-se um pouco do refinamento português”, conta. Ao frango, introduzido pelos portugueses ao cardápio, as cozinheiras da África introduziram o quiabo, imprimindo um modo de preparo distante do que era comum na Europa.
Rosilene lembra que a cozinha mineira se divide em duas vertentes. Uma delas é a seca, na qual se inclui o feijão-tropeiro, que era transportado no lombo dos burros dos bandeirantes que desbravaram o estado. “A outra é a molhada, das fazendas, que não eram levadas para as viagens. Eram servidas em sopeiras nas mesas e jantares dos senhores”, diz. É o caso de outro prato atribuído à criação das mãos africanas, o tutu de feijão, que se agregou à carne de porco nas fazendas.
Temperos como a pimenta-malagueta também foram introduzidos pelos povos escravizados em nossas mesas. O próprio nome “quitanda”, em referência a biscoitos, pães, roscas e bolos mineiros, possui origem em “kitanda”, que no quimbundo, língua da família banta e falada em Angola, significa “feira”. E ainda o pão de queijo, o mais famoso produto da comida mineira, que ganhou o Brasil e o mundo, nasceu de uma goma de polvilho feita pelas africanas.
Fato ou fake?
O chef Júlio César Cândido afirma que a versão de que os negros escravizados aproveitavam os restos da cozinha dos senhores para criar pratos nas senzalas é interpretada hoje pelos historiadores da gastronomia como um grande mito. Exemplo disso é a feijoada que, reza a crença popular, teria sido criada pelos africanos a partir das partes menos nobres do porco desprezadas pelos patrões. Na verdade, a feijoada foi criada no Rio de Janeiro e tem origem no cassoulet, cozido português, feito com feijão branco. “Em Portugal, eles usam porco, cordeiro e ganso. No Brasil, eles adaptaram a receita aos produtos que tinham disponíveis”, diz o chef Júlio César.
Muito consumido em Minas, o bolinho de feijão, sim, é uma herança da África. Na Bahia, é usado no preparo do acarajé. Outro petisco com ancestralidade africana é o famoso fígado com jiló, tradicional nos bares do Mercado Central de Belo Horizonte, transformado em atração gastronômica para os visitantes. A mandioca também é largamente utilizada nas duas cozinhas, mineira e africana. “Aqui em Minas, a gente explora muito a raiz da mandioca, da farinha cozida. Lá eles usam também as folhas para preparar guisados”, compara Júlio César.
Apesar de Minas ter forte presença de ingredientes africanos na culinária, além da identificação no modo de preparo, prevaleceu a versão brasileira de uma rica herança portuguesa. “É a supremacia do embranquecimento. Existia ali no século passado a discriminação com a comida que vinha dos africanos”, lamenta Rosilene Campolina, citando como exemplo a atribuição da criação da própria feijoada, feita com carnes, até então, tidas como menos nobres, aos povos escravizados.
A história, no entanto, vem se modificando, com a maior valorização da herança africana na cozinha brasileira, sobretudo com a presença de chefs especializados na chamada “gastronomia preta”. “A gente come um pastel de angu, por exemplo, e nem imagina da influência africana. É preciso que isso seja valorizado”, diz Júlio Cândido, lembrando que a presença de chefs negros na cozinha brasileira ainda é pequena, apesar de alguns avanços.
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