Por Mariana Penna (Ipatinga) Jornalista, chef, especialista em Gestão de Qualidade e estudiosa da cozinha mineira
O cheiro do café coado na hora, a broa de fubá que sai do forno quentinha, a ardência nos olhos pela fumaça do fogão a lenha. Para quem nasceu em Minas Gerais, é possível que essas frases tenham trazido memórias de aromas e sabores. É como se uma teia de boas recordações fosse surgindo, com a lembrança das reuniões de família na casa dos avós, as brincadeiras com os tios e os banquetes regados a muita comida e bebida típicas das casas mineiras, cujas mesas tinham sempre um queijinho pra beliscar durante todo o dia. A essa comida que alimenta o corpo, os sentidos e a memória dá-se o nome de comida afetiva.
A cozinha mineira carrega aspectos de afeto e hospitalidade e isso se expressa em seus ingredientes e no cuidado com que os pratos são preparados. Quando falamos em memória coletiva na gastronomia mineira, estamos falando da memória de um povo formado pela miscigenação ocorrida principalmente nos ciclos do ouro e do café (séculos XVIII e XIX). Um povo que recebeu influência da cultura dos negros, dos índios e dos europeus e aglutinou o melhor de seus ingredientes para formar uma culinária que se destaca pela simplicidade.
No momento em que a gastronomia mineira atinge sua maior projeção nos últimos anos, destacando-se a indicação de Belo Horizonte como Cidade Criativa da Gastronomia pela Unesco (leia mais neste link), é importante rememorar nossas raízes e origens para não nos perdermos nos novos caminhos que se abrem. Manter viva nossa memória alimentar é, também, uma maneira de reafirmar a identidade de nossos pratos. Nossa culinária permite o uso de técnicas do Século XXI, bem como a utilização de equipamentos modernos no preparo dos pratos, mas sempre preservando nossos sabores e aromas.
Tanto a comida quanto a memória são capazes de criar hábitos alimentares, pois envolvem relações de trabalho, consumo, conforto, presentes em um plano afetivo em que se criam relações. Em uma receita de família o indivíduo enxerga a si mesmo, sua cultura, a sociedade em que está inserido, bem como sua cidade, estado e país. Identifica sabores e ingredientes que fazem parte de sua memória alimentar.
A culinária é a manifestação da cultura de um povo por meio de seus hábitos alimentares. Além do aspecto cultural, cozinhar, compartilhar refeições e receitas são atividades que agregam pessoas e despertam memórias afetivas. Os pratos típicos de cada região, portanto, carregam esse legado: de onde vieram, como foram preparados, quais as condições da época. Se a comida desperta memória afetiva e gustativa, a quem interessa a legitimação da memória gastronômica? Interessa a todas as populações de todos os lugares, pois trata-se de afirmar as próprias raízes, a própria existência. A descoberta de ingredientes regionais, sob certo aspecto, cumpre esse papel.
A cidade de Ipatinga, localizada no leste de Minas Gerais, na Região Metropolitana do Vale do Aço, carrega em sua história uma mistura curiosa de sabores e ingredientes. A região, que foi habitada originalmente por povos indígenas, recebeu ao longo de sua história a influência de diferentes etnias. Portugueses, africanos, japoneses, italianos e libaneses deixaram sua marca na infraestrutura e na culinária local.
Nesta época, todos os insumos alimentares eram adquiridos na “Rua do Comércio”, onde se encontrava de tudo um pouco, de pequenos animais de caça a hortaliças e legumes. A história do avanço da siderurgia se entrelaça ao desenvolvimento das cidades em diversos aspectos. Seja na forma (metade planejada e metade desordenada) como foram erguidas no entorno das usinas, ou pela dificuldade de escoamento da produção local, tanto do aço como dos produtos agrícolas. Atualmente a região é uma grande produtora agrícola, porém enfrenta o mesmo problema que as empresas siderúrgicas enfrentaram ao longo de décadas: a logística para transporte, uma vez que a principal rodovia que liga a cidade a outros estados encontra-se em obras de duplicação há mais de oito anos.
Entre os ingredientes tradicionais da região estão a mandioca, o quiabo, o jiló, o milho, a banana, o abacate, o mamão, entre outros. Há também registros de cultivo de hortaliças como salsa, cebolinha, couve, almeirão e espinafre, cultivados nos quintais das casas de famílias originárias de outras cidades de Minas Gerais, tradição que permanece viva até hoje.
No entanto, a relação da região com seus ingredientes típicos não parou no tempo. Como forma de diversificar a economia e aproveitando-se de que “nesta terra, em se plantando, tudo dá!”, já se firmam como produtos tradicionais da região o palmito de pupunha e uma pequena variedade de cogumelos. Prato cheio para os cozinheiros locais que mesclam a culinária tradicional mineira aos novos ingredientes, valorizando nossa história e atribuindo novos sabores à nossa cultura, tradição e memória gastronômica.
Passado e presente se cruzam na história e também nas mesas das famílias do Vale do Aço, mostrando que comida não é só comida. Ela simboliza também afeto e memória, bem como posição social, renda, localização entre tantos outros aspectos. Conhecer nossos ingredientes é valorizar nossa história, nossa cultura e preservar nossa memória afetiva e gustativa. O sabor desperta a memória. Ingrediente conta história e preserva a tradição que é tão importante pra cultura e gastronomia mineira, passadas de geração em geração.
Sobre a autora
Graduada em Comunicação Social/Jornalismo pelo Centro Universitário do Leste de Minas Gerais (Unileste/MG), Mariana Penna é natural de Ipatinga (MG), onde vive e trabalha atualmente. Atuou como assessora de imprensa nos setores público, privado e cultural, em sua terra natal e em outras cidades do estado. Herança familiar, o gosto pela culinária passou a ganhar cada vez mais prioridade entre seus interesses, deslocando-se do afeto para o trabalho. A inquietação profissional e a necessidade de referência técnica e histórica sobre o assunto motivaram-na a ingressar, em 2016, no curso de pós-graduação em Gestão de Qualidade em Gastronomia, da Faculdade Estácio, em Belo Horizonte. Hoje, pesquisa sobre gastronomia mineira, memória e história da alimentação, além de atuar como chef de cozinha.
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